Translate

sábado, 16 de outubro de 2010

cinema-seta

Mas andaram dizendo que um certo famoso cineasta e critico de cinema – do qual não citarei o nome porque ainda nem vi, nem li livros inteiros dele, apenas retalhos, e não quero propagar estigmatizações ou rótulos – abominava a utilização de música não diegética no cinema. Segundo o crítico, a música “[...] isola seu filme da vida de seu filme (deleite musical). Ela é uma possante modificadora e até destruidora do real, como álcool ou droga”. Andam dizendo, inclusive, que isso são palavras dele, não o conheço, mas o assunto aqui não julgar o crítico, mas disparar um campo temático.
Posso citar aqui duas formas de se compreender os efeitos do uso de drogas, uma delas apontando-as como “embaçadora” da realidade, como folhagens que impedem de ver o quintal do vizinho, um cisco no olho, um vapor na vidraça, as drogas como impeditivos, como afastamento do contato com o real, o real que já estávamos tão próximos e que com as drogas nos distanciamos e ficamos perto de uma “alucinação”. Drogas como “alucinógeno”, como “destruidora do real”. É neste modelo “alucinógeno” das drogas que esse famoso crítico se serve pra fazer a crítica ao som não diegético, como se este fosse um embrolho, um alucinógeno, um embaçador. Montando o filme brincando apenas com os diegéticos, numa sinfonia de ruídos realistas, acessaríamos mais o real, não acrescentaríamos cores artificiais em sua constituição, manteríamos o olhar atento no maravilhamento de um real presente e que deve ser exaltado como tal, cinematografando assim... sem arestas e embaçadores, focando os detalhes do real (sem floreamento) prestaríamos mais atenção e nos encantaríamos com a peculiaridade e poesia que o mundo cada vez mais nos revelaria.
Mas tem o modelo de compreensão dos efeitos das drogas como abridoras de níveis diferenciados de realidades, níveis aqui presentes, mas em outro tom de sutilidade. Como para os ancestrais, as drogas não são drogas, são portas de acesso para sentirmos planos em que sempre estivemos emergidos, mas que nunca nos demos conta, como se estivéssemos dormindo. Chamar tais “portas” de “alucinógenos” seria fugir, por preguiça ou medo, do encontro com estes níveis e é compreensível a fuga, pois tais novas aberturas balanceia toda a estrutura racionalmente conhecida e familiar, daí se proteger chamando o novo mundo que se apresenta de “alucinação”, um momento de auto-engano do já conhecido. Mas temos que sair da casinha para conhecer, dizem os ancestrais.
Como ficaria, assim, um cinema-portas, entendendo tais recursos não como alucinações ou destruições do real, mas como dedos apontadores de um mundo imensamente mágico? Cheio de gigantescos planos mais sutis, que o cinema, com seus recursos e palavras-mágicas, podem colaborar ao nosso acesso, como um nativo dos novos mundos que se quer visitar e que nos abre os caminhos, apresentando seus percalços, suas durezas, suas cachoeiras e horizontes, suas florestas densas, nos acolhendo, sempre desconfiado e nos recepcionando, nos anunciando aos moradores e protetores destes novos campos que acessamos? Um cinema-aldeão, um cinema desentupidor de armadilhas? Desatador de nós?
O som não diegético entra mesmo como um estranho naquilo que é conhecido e reconhecível. Recria ativamente o ambiente da cena vislumbrada, isso através de uma montagem de um feiticeiro que recolhe símbolos (imagens e sons) que estavam cada um em sua dispersão e os aglutina numa poção mágica (cena) que explodirá no caldeirão, uma poção singular, inédita, estranha, desequilibradora daquilo que está. Faz tremer, pois revela que as combinações são infinitas e que o infinito então existe e que o potencial de criação é muito maior, sempre maior.
Uma combinação não diégetica pode tocar em níveis irreconhecíveis, nada familiares de bate-e-pronto, atinge então aquilo que estava desprevenido, sem guardas, chega como um estrangeiro e toca nos níveis não endurecidos e contamina, amolece as couraças.
Por fim, o cinema nunca irá filmar o real. Nem venha com essa de limitar os artificialismos da montagem cinematográfica! Pensando que assim há mais possibilidades de captura do real! O cinema cria símbolos, mescla-os, amplia o leque de símbolos no mundo para que possamos, lendo-os, nos aproximar cada vez mais de nossa verdade mais profunda. O que ainda digo é que tais símbolos no cinema são extremamente gritantes aos nosso ouvidos entupidos, sua carga destravante pulsa alto naqueles filmes imensamente sensibilizados. O cinema não deve ficar procurando filmar o real, mas assumir seu destino e potência de seta para o invisível, de placa indicativa do caminho para o imenso nada.

Nenhum comentário: