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domingo, 22 de agosto de 2010

Ponette e a alegria

“Me disse que aprenda a ficar contente”, a mãe de Ponette voltou em carne e osso e lhe deu essa atenção, essa dica.
“Carne e osso” num sentido duro da expressão. Uma realidade a ser encarada, sem pra onde fugir: a mãe morreu, bebê! E a morte requer desapego, lidar com isso. Ponette precisa desmamar imediatamente, à força, às pressas. E não adianta convidar um ser que já passou proutro plano pra uma festa, ou oferecer-lhe balinhas coloridas redentoras... não! A lição, Ponette, agora não é como se aproximar de alguém que já foi, ou trazer esse alguém que já está pra lá para cá de volta. A lição é dura. É preciso olhar pro mundo e assumir novos laços, completamente diferente dos que tinha com mamãe. Aprender a ser mais só você mesma e isso dói muito. A vida poraqui é muito pouco aconchegante, Ponette... mas é muito satisfatório ir amolecendo tal dureza... ir se encantando com os nós que embananam tudo pela frente... cada vez que se enfia mais na vida, mais mostra que a trama é mais embromada, mas a partir de um momento, pequena, isso passa a ser o sentido da coisa, a alegria da caminhada. A via-crúcis da vida, Ponette, é o inferno necessário para o êxtase do amor. Essa separação fúnebre, forçada pela foiçada da morte, é um crescimento... menina, isso é dor de perder e ser obrigada a ganhar a si mesmo... “a madureza essa terrível prenda que alguém nos dá levando-nos com ela todo sabor gratuito de oferenda sob a glacialidade de uma estela.” (Drummond) Tá vendo como aprender a se alegrar é uma missão complicada, sutil...! É como ser um riacho (I Ching)... correndo e tapando os buracos e fluindo, levando quem quer fluir junto... aprender a ser contente é saber que a tristeza é mais do que uma forma de egoísmo (Arnaldo), é uma maneira medrosa de encarar a dureza da vida... a tristeza (com T maiúsculo) é uma maneira de se esconder, não se encarar, não se soltar, não se mostrar, não se revelar... quando se vê que na via-crúcis o caminho se traça com alegria ou vai ficar na estrada por o triplo de tempo. Viver alegremente passa a ser dolorido, ter de sentir a força da magia crua da vida e com isso se extasiar exige entrega pro fluxo, do que vier de mágica beber sedento. Ponette, agora não adianta fazer cara de choro, o tempo de luto é respeitado, mas medo de viver já é outra coisa, mais próxima da manha, da não maturidade.
Ponette, um centro único, condensado, em que você mirava todo seu amor despreocupado e acolhedor, explodiu, se fragmentou no impacto do volante do carro. Fagulhou-se e você pra encontrá-lo vai ter de procurar em tantos corações poraí que vai acabar descobrindo outras tantas fagulhas de amor antes explodidas que irão lhe seduzir, pode pegá-las, mesmo receiosa, vai montando um mosaico feito com muita dor e doação de si, esse mosaico vai formando aberturas, brechas internas, por onde vão escoando as águas da sensibilização. Você vai ficar, um dia, toda contente de ter o peito todo molhado, daí o brilho nos olhos virão... desmurcha, então, Ponette... agora!

(escrito depois de vislumbrar o filme “Ponette” de Jacques Doillon)

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